domingo, 19 de dezembro de 2010

Os gritos assustadores chamados silêncio


Vivemos em sociedade. Toda sociedade necessita de sinais, signos, significantes para que as pessoas possam interagir umas com as outras. Tudo aquilo que sabemos sem saber como nem por que constituem (de maneira tanto quanto simplificada) o senso comum.

Ontem estava com uma amiga e passou por nós um mulherão, corpo super malhado, vestido justo e curto, salto alto e cabelos compridos. Eu afirmei prá ela: "Nossa! Que mulher gostosa!", e ela riu. Logo em seguida iniciamos um diálogo sobre como era engraçado o fato de eu ter dito que aquela mulher era "gostosa", bem como quando me refiro a um homem como "gostosão", já que nem aquela mulher nem os homens que recebem o título de gostosos são, dentro da minha percepção do que seria a gostosura, gostosos.
Não me sinto atraída pelos corpos muito malhados, mas, diante de uma pessoa assim não páro para refletir o que é, na minha concepção, um gostoso. Simplesmente afirmo aquilo que será compreendido para designar alguém como algo. Isso é o senso comum, ou melhor, é usar dele para se fazer entender. Aquela mulher pode não ser gostosa aos meus, mas, aos olhos da sociedade ela é.
O engraçado é que a "sociedade" que me ouvia naquele momento era alguém que compartilha do meu conceito de gostosisse...

Não quero ser mal compreendida aqui. Não existem apenas duas opções: ou se vê a mulher como gostosa e faz-se parte de um grande saco chamado sociedade, ou então não a julga como atraente e compõem-se o lado B. Claro que não. É possível fazer parte dos dois grupos, os que gostam e os que não gostam daquele corpo, é possível também não fazer parte de nenhum dos dois grupos, e ainda é possível ser parte de um terceiro, de um quarto, e até de um décimo grupo. A minha intenção ao reduzir é simplesmente facilitar a exposição do meu ponto. Assim como reduzo a apenas o gosto por corpos um assunto que envolve simplesmente (?) tudo que existe no mundo. Não quero ser simplista, apenas quero tornar possível a execução deste texto.

O senso comum é muito útil, como marcaríamos um encontro em determinados local e horário se cada um compreendesse as palavras a sua maneira? Te encontro na praça as 09:00. João estaria as 09:00 na praça e Maria estaria escovando os dentes embaixo da pia a qualquer hora. Não seria possível viver assim.
Todavia, apesar de útil, ele também aprisiona e nos torna intolerantes e prepotentes. O diferente passa a ser algo com uma conotação pejorativa com uma facilidade absurda. O exercício de refletir sobre seus conceitos próprios pode tornar-se algo raramente executado, fazendo de nós meramente reprodutores da massa.
Usar do senso comum como ferramenta de comunicação, de participação, é algo válido e importante para estarmos no planeta, mas, usar dele para ver/sentir/perceber/viver o mundo é ruim, pois faz com que não apenas esteja-se nele, mas, também, que se seja dele. Não há neste caso nem uma parte de liberdade, e assim acabamos cárceres. Nem a nossa percepção é nossa.

Estar no mundo sem ser dele.

Caso entre na casa de alguém que use baldes como luminárias, alguém muito apegado aos valores da sociedade poderá instantaneamente taxar aquilo como feio, incompreensível e quem fez aquilo como louco ou algo do gênero, afinal, este não é o uso dos baldes, eles não foram desenvolvidos para isso.
Já o dono da luminária (ou seria do balde?) pôde usar aquele balde daquela maneira por conseguir compreender que os padrões comuns são simplesmente os padrões comuns e nada além. Por pensar que o balde diminuía o forte brilho irradiado pela lâmpada e dava um colorido bonito ao ambiente quando a luz passava pelo plástico rosa. Por que dentro do conceito dele de bonito aquele balde no teto de sua sala era de fato belo. Que a ele pouco importa se o resto do mundo o acha louco por aquela atitude, talvez loucos sejam aqueles que optem por viver em uma prisão quando podem ser adeptos da liberdade. E se acham o seu balde feio, mal aplicado ou qualquer coisa de negativa, tudo bem, esta é a percepção alheia, e a casa é sua, logo, deve estar do seu gosto. Com certeza outros "loucos" escutam os gritos assustadores do silêncio como ele e considerariam o balde algo "muito bacana", "bonito", talvez até "genial".
O visitante que ao invés de se preocupar em julgar o balde resolver observá-lo poderá até sair dali para reproduzir o mesmo em sua casa.

Estar no mundo sem ser dele. Escutar os gritos que compõem o silêncio e não se angustiar pelo fato de que nem todos ouvem. Compreender que as pessoas tem suas percepções, suas opiniões, e que estas devem ser respeitadas (inclusive pelas próprias). Este respeito inicia-se quando aceita-se que seus olhos não são os olhos do mundo, e que não há nada de errado nisso, ainda que o mundo tente convencer-te do contrário.

Estar no mundo, sim, mas nunca ser dele.

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